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Exploração da borracha na Amazônia: uma história alternativa.

 Estereótipos repetidos em filmes e novelas encobrem o que foi realmente o boom do comércio do látex na Região Amazônica.
Doca do Reduto, Belém do Pará, em 1908 mostrando a importância do comércio fluvial na Amazônia
     A narrativa clás­sica do auge da exploração de borracha na Amazônia perpassa uma "história de glória e cobiça": com novos-ricos explorando pobres seringueiros e acen­dendo charutos em notas de cem mil réis; dirigentes políticos, deslumbrados pelo aumento fantástico da receita pública, esbanjando dinheiro em projetos suntuosos e irracionais, como o Teatro de Ópera de Ma­naus e a estrada de ferro Madeira-Mamoré. Também repassa a imagem estereotipada da Amazônia como um lugar não civilizado que, exceto por breves intervalos de euforia econômica movida por forças externas, só existiu "fora da história".
     Barbara Weinstein, professora na Universidade de Maryland (EUA), em seu livro “A borracha na Amazônia: expansão e decadência”, mostra uma versão diferente, que se opõe aos estereótipos conhecidos. Ela contesta três das hipóteses mais difundidas sobre o boom.
A pri­meira: Que as elites regionais aderiram cegamente e em massa ao negócio da borracha, desprezando pro­jetos de longo prazo para o desenvolvimento da re­gião:
       Em 1854 o presidente (como eram chamados os governadores) do Pará condenara com veemência "o emprego quase exclusivo dos braços na extração e fabrico da borra­cha, a ponto de ser preciso actualmente receber de ou­tras Províncias gêneros de primeira necessidade". E concluía: "Isto constitui certamente um mal". Domin­gos Soares Ferreira Penna, funcionário do governo, denunciou aquela "abo­minável indústria" e concluiu que "a extração da borracha não é fatal ape­nas para o seringueiro; seus efeitos perniciosos (...) recaem sobre outros ramos de indústria, sobre a riqueza e civilização no interior da província".
     Como podemos explicar tais rea­ções desanimadoras em face do cres­cimento das exportações de borracha bruta? Uma explicação é a crença ge­neralizada de que as atividades extrativas, tal como a coleta da borracha, não podiam constituir a base de uma ordem social e econômica estável. As chamadas classes conservado­ras valorizavam empresas agrícolas, assentamentos permanentes de colonos, fontes seguras de riqueza, e um processo "de desenvolvimento social". Dificil­mente o comércio da borracha seria compatível com qualquer um desses objetivos.
     Em 1887, o barão de Marajó defendeu planos de colonização argumentando que "um agri­cultor será mais útil para nós do que dez ou vinte se­ringueiros". No mesmo sentido, o fundador da Socie­dade Paraense de Imigração sustentou que "a indús­tria extrativa, que serve apenas para avolumar os co­fres públicos, não dá, nem pode dar à população amazônica a felicidade a que tem jus". Os primei­ros governadores republicanos do Pará liberaram ge­nerosas verbas para assentamentos agrícolas. A maior parte destes projetos foi mal concebida e infrutífera, mas eles apontam que as autoridades na Amazônia entenderam a natureza efêmera do ciclo da borracha. Precisamente em 1909, no próprio ápice do boom, o secretário de Finanças do Pará inseriu a seguinte ob­servação em seu relatório anual: "A nossa situação econômica é mais precária do que parece, o nosso progresso é mais aparente do que real. Somos um po­vo pobre, a fortuna particular é instável... Sofremos o mal dos paizes que vivem das indústrias extractivas com a agravante de só termos um producto de valor".
A segunda: Que os seringueiros foram vítimas indefesas dos barões feudais da borra­cha e constituíam mão-de-obra meio-escrava:
Homens recolhendo o látex efazendo a defumação
"Estradas" da Hevea brasiliensis se achavam espalhadas pela mata, crescendo fora de qualquer padrão, o que obrigava os se­ringueiros a viver em assentamentos dispersos e iso­lados. Durante a estação da sangria, o principal con­tato cora o "mundo exterior" era o "aviador", comer­ciante local que trocava víveres e outras mercadorias por bolas de borracha diligentemente elaboradas pe­los seringueiros. E, uma vez que as árvores de um de­terminado lugar tinham sido totalmente "sangradas", o seringueiro se mudava para uma nova zona, nada deixando para trás que demonstrasse sua presença na área, a não ser algumas exauridas seringueiras. A extração da borracha deixava o seringueiro, na maior par­te do ano, numa remota choupana, onde ele ficava fora do alcance das autoridades civis, permitindo-lhes  uma considerável "independência". A verdade é que o comércio inicial da borracha criou uma população relativamente au­tônoma, de produtores praticamente independentes. Havia pouca possibilidade de se supervisionar de perto essa força de trabalho. Os seringueiros tinham contatos infreqüentes com os contratantes, e fugiam dos seringais na esta­ção de chuvas. Seria um exagero dizer que esta população móvel e pouco vi­giada vivia em completa liberdade, mas os frouxos laços entre patrão e empregado estavam longe de repre­sentar o tipo de vínculo que caracte­rizava a relação senhor-escravo.

     Talvez a melhor demonstração da contínua capacidade dos seringueiros de manter certa autonomia esteja nas queixas dos investidores estran­geiros que desejavam implementar "métodos moder­nos de negócios" na região da borracha no início do século XX. No auge do boom, muitos sindicatos norte-americanos e europeus adquiriram enormes faixas de território na Amazônia e tentaram racionalizar a produção da borracha. Um após outro estes sindicatos faliram, apesar de sua ambição e autoconfiança. Várias razões são responsáveis por esses fracassos, mas os próprios investidores mencionam as dificuldades que encontraram com a força de trabalho local. Uma fir­ma francesa foi obrigada a "comprar" borracha de seus "empregados" a preços mais altos do que os originalmente combinados. Outros supervisores da firma reclama­ram que não podiam impedir que seus seringueiros vendessem a cambistas e advertiram futuros investidores a estu­dar o "caráter dos nativos". O gerente da falida empresa Brazilian Rubber Trust respondeu a sua própria pergun­ta sobre qual solução poderia se dar aos problemas com a mão-de-obra: "Temo que não haja nenhuma (...) a não ser usar mão-de-obra estrangeira (...) chineses ou japoneses, que irão trabalhar por um salário para fazer qualquer coisa que lhes for indicada, o que me parece essencial para o sucesso das compa­nhias estrangeiras trabalhando no Brasil".

 A terceira hipótese e a ser revista: Que a economia amazônica soçobrou no momento em que o centro da pro­dução da borracha se transferiu para a Ásia:
Embarque do caucho em Itaituba
Para certos segmentos da comunidade da Amazônia, o colapso dos preços da borracha foi nada menos que catastrófico. Os estabelecimentos comerciais de aviamento, cujos bens consistiam em sua maior parte de “débitos” feitos pelos intermediários, de repente perceberam que suas propriedades não tinham mais nenhum valor. As propriedades urbanas, vistas como um dos investimentos mais seguros, tiveram de ser vendidas por uma fração de seu preço anterior, e avisos em jornais da região regularmente anunciavam leilões de jóias e mobiliários. Para essa elite, o mercado da borracha significou realmente o fim de um estilo de vida.
      Entretanto, as estatísticas também indicam que, pa­ra outros moradores da Amazônia, o impacto do co­lapso não significou uma ruptura dramática e nem foi assim tão desastroso. Enquanto o valor das exportações da borracha caiu drasticamente depois de 1910, a produção aumentou por muitos anos após o colapso, e o total praticamente permaneceu igual até a década de 1920. Por uma década, os seringueiros não al­teraram significativamente seus índices de produção, apesar de o mercado da borracha ter entrado em longo declínio. Pode-se concluir que, nos primeiros dois anos que se seguem ao colapso, seringueiros e negociantes mantive­ram ou aumentaram o nível de produ­ção e troca, na esperança de que o mer­cado pudesse recuperar logo sua anti­ga capacidade de flutuação. O que cau­sa maior perplexidade é o alto índice de produção após 1912, apesar dos si­nais de que o declínio era permanente. 
     Celso Furtado alega que, depois do colapso, produtores rurais na Amazô­nia "voltaram-se para a mais primitiva forma de eco­nomia de subsistência". Esta conclusão parece clara­mente falsa. Os seringueiros continuaram a produzir borracha para o mercado, e o fizeram apesar da abrupta queda dos preços. O que, então, ex­plica a aparente imunidade da eco­nomia extrativa às leis de oferta e procura? Primeiro, a maioria dos habitantes da Amazônia provavelmente permaneceu enredada com um comerciante local, envolvida numa relação ambivalente de coerção e anuência que os le­vava a continuar cortando seringueiras. Em segundo lugar, eles puderam agüentar o drástico declínio do valor do látex que retiravam, dedicando uma parte maior de seu tempo "livre" a ativida­des de subsistência. A borracha deixou de ser a única fonte de renda para se tornar um suplemento que lhes dava acesso a bens que não podiam produ­zir. E, quando o preço da borracha, na década de 1920, caiu a ponto de tornar insustentável esse sistema, mui­tos seringueiros do baixo Amazonas mu­daram para a castanha-do-pará. Em outras palavras, colher pro­dutos da floresta por dinheiro ou bens se tornou um aspecto funda­mental da vida rural na Amazônia.  
     A economia extrativa existia muito an­tes da idade de ouro do comércio da borracha e persistiu, com algumas mudanças significativas, por quase um século depois de seu declínio. Os seringueiros de hoje não são remanescentes de uma prosperidade fali­da, mas participantes de um modo de vida bastante flexível e, para alguns, vantajoso o suficiente para ser uma presença contínua na histó­ria, na política e na sociedade da Amazônia.

Fonte: Revista Nossa História.

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